domingo, 28 de julho de 2013

Capítulo 27: "Eu não acredito que tu só me vejas como um amigo"

A casa dele estava coberta de vedações, árvores, arbustos e tinha um aspeto de uma vivenda moderna, não haveria como saltar e ir diretamente para a porta de casa. Toquei á campainha e respirei fundo, haveria de falar com ele nem que saltasse a porta da vedação e entrasse, nem que a polícia me abalroasse, não tinha deixado o João para estar com o Ezequiel em vão. Por pensar nisso, como será que ele vai reagir quando vir o meu recado? Não o quero magoar, longe disso, simplesmente existem aspetos da minha vida que têm de ser mudados e tratados antes da nossa relação avançar, a minha relação com o Ezequiel precisava de ser esclarecida. Havia algumas coisas que eu já sabia: do João eu era melhor amiga e namorada, o que aumentava o nível da nossa relação, a nossa relação, fosse qual fosse tinha futuro enquanto a minha relação com o Ezequiel era só.. Algo complicado. Combinamos ficar amigos, mas na realidade nenhum de nós desabafa com o outro, eu não tenho coragem de lhe contar o que quer que fosse que se passava com o João, nem com a minha vida familiar, ele tinha problemas maiores que os meus e eu não o queria incomodar, enquanto eu estou ao pé da família da parte da minha mãe, apenas com a minha família paterna nos Açores, ele deve ter a família na Argentina e quanto aos irmãos, não sei se tem, durante as nossas conversas nunca conversamos sobre isso. Como foi possível eu ter namorado com ele sem saber estas coisas... Mínimas? Será que era por egoísmo meu, por egocentrismo? Talvez. Ele sabia, do Rodrigo, sabia que o meu primeiro namorado e pai do bebé que faleceu no meu ventre me tinha abandonado e que neste momento namorava com um colega seu de profissão. Que vivia com a minha mãe e tinha família nos Açores, conhecia a minha prima Rita e sabia tantas outras coisas sobre mim, muito mais intimas e pessoais. E eu dele pouco sabia, sabia algumas coisas pessoais e conhecia-o em termos profissionais porque sempre que chega um jogador ao Benfica, a Qeu trata de fazer uma pesquisa do seu historial futebolístico.
A porta abriu e eu entrei, havia uma espécie de caminho em pedra e eu percorri-o entretida aos saltinhos, confesso que parecia uma menina pequenina, talvez no jardim de infância a pisar apenas as pedras para não pisar o chão e lá cheguei á porta sem olhar. Subi as escadinhas sempre a olhar para o chão e para a originalidade das casas novas, era verdade que quem me visse ia pensar que era a pessoa mais infantil mas sou espontânea, e quem não gosta tem bom remédio, não sente a mesma felicidade que eu! As crianças é que tem razão, os adultos só complicam a vida e agora sinto-me uma adulta muito séria, e tenho de ver a situação como se fosse uma criança. Vou falar calmamente com o Ezequiel, como amigos com calma e depois vou ter com o João e explico tudo. Entretida não percebi e fui contra um corpo, como estava com um pé mal apoiado no chão (graças aos meus “saltinhos”) e cai no chão, batendo com o rabo nas pedras frias e duras, apenas consegui deixar-me dizendo:
-Autch! – Apoiei uma mão no chão para me levantar e senti outra a agarrar-me na outra mão e perguntar:
-Estas bien pequeña? – Aquele espanhol era-me todo familiar e trazia-me á memória recordações de um momento em particular:
(Recordação)
-Cariño, eu não me chamo Q. Chamo-me Ezequiel. Vê lá se mudas o nome na camisola. – voltei-me imediatamente para ele e falei:

-Cariño, oh que raio que tu disseste, estamos em Portugal por isso fala português, diz-se carinho e já recebi elogios mais bonitos que isso mas não de um homem deste calibre. – sorri e olhei-o olhos nos olhos. Depois fiquei séria e falei:
-Quem te disse que é do teu nome o Q?
-Na tua camisola está o número com que jogo no Benfica. Segundo está aí o meu nome bem explícito Garay, estamos em Portugal e o meu nome é argentino, logo não é difícil de adivinhar que sou eu… -Levantou-se e olhou-me olhos nos olhos, respondi:
-O Q é de Qeu, a minha alcunha porque me chamo Raquel…E tens razão esse Garay na camisola é do teu nome. –sorri virei costas e fui embora.
 (Fim de Recordação)
-Mas quantas vezes tenho de te dizer que em Portugal se fala português e não essa tua língua? – Comecei a resmungar entre dentes por instinto. Sinceramente nem tinha pensado no que dissera, simplesmente dissera-o.
-Mas será que o teu feitio nunca modera? – Puxou a minha mão de uma forma tão forte que num instante me levantei e fiquei frente a frente com ele, de corpos colados, olhos nos olhos. Sentia a sua respiração sobre os meus lábios e era extremamente exigente concentrarmente no que quer que fosse com aquela proximidade, o seu perfume entranhava-se nas minhas narinas e seguia caminhos estranhos que faziam o meu coração aumentar e muito o seu ritmo. Mas será que como o meu feitio ele também não mudera a sua forma atraente de ser? Fechei os olhos mas não ia permitir que ele me beijasse, não que não quisesse mas por respeito ao João. E estar com os dois não me ajudava a decidir. – Pelos vistos há coisas que não mudam mesmo! – Encostei a minha cabeça ao seu peito assim não havia como ele me beijar, assim podia fugir dele. Estando próxima dele. Abri os olhos e olhei para o lado, não queria que ele falasse mas insistiu. Ficamos assim durante algum tempo.
Era bom ouvir o seu coração, a sua respiração embater na minha cabeça, sentir o seu perfume entranhar-se em mim, como se por magia. Aquilo que estavamos a fazer não era um erro nem parecia um erro, não estava a trair o João, mas por um lado sentia-me a enganá-lo. Mas se somos amigos e não me sinto a enganá-lo porque não haveriamos de fazer? Era um abraço de amigos! Respirei fundo e deixei-me ficar assim, sentia-me bem. E aquele silência sabia-me ainda melhor.
-Qeu. – Olhei para ele e ele continou. – Queres ir lá para dentro?
-Lá para dentro? – Perguntei confusa apontando para dentro de casa, a porta estava aberta era só dar dois paços e estavamos lá dentro mas mesmo assim estava confusa. Fui apanhada desprevinida.
-Sim. Quero mostrar-te uma coisa. – Olhei-o confusa. Já não estava a entender nada, porque é que ele queria ir para dentro de casa? Deu-me a mão e queria levar-me para dentro de casa mas eu fiz força para não sair do mesmo lugar.
-Não vou contigo lá para dentro não senhor! – Fugi com a minha mão ao seu toque e á sua mão. – Sou fiel ao João e a entrar para dentro da tua casa sei que vamos para caminhos que eu não quero ir! – Eu queria falar com o Ezequiel mas ao mesmo tempo estar longe dele, queria explicar-lhe que gostava do João, que era feliz com ele e por ele não senti ao mesmo amor, mas era mentir. Queria estar perto mas longe.
-Não confias em mim? – Tentava não olhar para ele senão tinha medo de deixar de o ouvir perdida em tamanha beleza, por isso olhava para a sua barba, para as suas bocechas (embora tapadas pela barba), para o seu nariz, ou testa, conhecia todas aquelas feições, os lábios conhecia os recantos, até bastante mais do que estava á espera! O que conhecia menos na sua face eram os olhos, porque fintava-o sempre.
-Confio, mas... – Comecei a olhar para o chão a tentar arranjar uma desculpa melhor do que a confiança ou o João para não entrar em casa dele. Já sei! – Não quero ir, pronto é isso! – Confessei.
-Caso não te tenhas apercebido já estás na minha propriedade.. – Ri-me. Não estava em casa dele mas estava na porta.
-Então eu vou ali para a rua para o outro lado da porta e tu falas aqui de dentro pode ser? – Perguntei a sorrir.
-És mesmo tonta Qeu! – Fingi-me ofendida. – Queres ir para a piscina então? – Não estava tempo para tal e não tinha roupa por isso podia perfeitamente ser á beira da piscina. Mas será que todas as minhas relações tinham algo a ver com água? Comecei a namorar com o João na praia, vou ter esta conversa com o Ezequiel á beira da piscina, será que o problema era mesmo eu que tinha “água” na testa? Comecei-a a rir sozinha e o Ezequiel acompanhou-me mas depois parei porque já me doía o maxilar de tanto me rir.
-Vamos lá senhor Ezequiel! – Caminhamos até á piscina e enquanto ele se sentou numa das espreguiçadeira eu sentei-me com as pernas dentro de água, estava de calções e só me ia refrescar, não tinha mal, assim esperava.
-Viste a mensagem que te deixei no correio de voz? – Olhei para ele que acenou com a cabeça positivamente. – E então porque não disseste nada?
-Raquel. – Levantou-se e sentou-se ao meu lado. – Eu não acredito que tu só me vejas como um amigo. – Estava a custar-me ouvir aquilo, principalmente quando me dizia olhando-me nos olhos. – Nós começamos a nossa história ainda há pouco tempo é certo mas já é uma história... Particular. Não acredito que não tenhas qualquer tipo de sentimento por mim. – Ia abrir a boca e responder mas ele não me deixou e continuou. – Deixa-me acabar por favor. Sei perfeitamente que combinamos que iamos ficar amigos mas eu tinha de te dizer o que sinto antes de tomar alguma decisão, seja ela qual for. Podes dizer que não sentes nada mas eu vou continuar com as minhas dúvidas, ainda não me consegues olhar nos olhos, ainda tens necessidade de ficares agarrada a mim e a tua preocupação em não quereres entrar em casa? Quero ver-te justificar isso não é para mim mas para ti própria! Não vou tentar nada, tu és namorada do João e eu respeito isso, estás feliz com ele e a tua felicidade está acima da minha! Mas só te peço para pensares bem no que vais fazer, por favor, eu estarei sempre aqui do teu lado seja a tua escolha qual for. – Olhei-o diretamente nos olhos enquanto ele se levantava e sentava-se ao meu lado. Continuavamos com os olhares cruzados um no outro, não sabia mesmo o que dizer, secalhar o silêncio era mesmo o que o momento pedia. Sentou-se ao meu lado e num gesto, meio involuntário aproximei os nossos corpos , todo o nosso corpo estava a centímetros e as nossas faces estavam violentamente próximas, aquela (pouca) distância que havia entre nós era suficiente para num impulso cometermos um erro. Havia desejo entre nós, mas não era um desejo sexual, era um desejo muito mais puro, o desejo apenas de sentir os seus lábios a saborearem os meus, as nossas línguas cruzadas como uma só. Nós, juntos. Simples. Cravamos ainda mais os nossos olhares, não pensei em nada, nada mesmo, não conseguia.
Fechei os olhos e coloquei as minhas mãos sobre o seu peito, os nossos lábios estavam demasiado próximos, bastava eu mexer os lábios que se cruzavam, sentia a sua respiração nos meus lábios. Aquele silêncio e aquele momento sabiam bem, até que...

You tell all the boys no (Dizes não a todos os rapazes)
Makes you feel good yeah (Faz-te sentir bem)
I know you're out of my league (Sei que estás fora do meu alcance)
But that won't scare me way out no (Mas isso não me vai assustar e afastar)

Aquela música despertou-me para a dura realidade, continuamos tão próximos como estavamos antes, os olhos dele estavam fechados e estavamos á espera do momento certo, ou talvez do instinto a falar. Nenhum dos dois queria unir os lábios, queriamos saboreâ-lo mas faltava coragem, sabiamos que isso ia trazer resultados que não seriam positivos.

You've carried on so long (Levaste isto por tanto tempo)
You couldn't stop if you tried it (Não consegues parar nem se tentasses)
You've built your wall so high (Ergueste um muro tão alto)
That no one could climb it (Que ninguém consegue subi-lo)
But I'm gonna try (Mas eu vou tentar)

Não, não podia fazer aquilo! Iria sentir-me culpada para o resto da minha vida, iria viver com remorsos, iria criar uma falsa expectativa ao Ezequiel, iria enganar o João e eu não iria perdê-lo. Afastei-me a pouca distância que os nossos lábios tinham e encostei a minha cabeça ao seu peito, era isso que precisava. Precisava de sentir-me viva e segura, e nos braços do Ezequiel eu podia escutar o seu coração e matar as poucas dúvidas que tinha sobre o que ele sentia.

Would you let me see beneath your beautiful (Deixas-me ver por baixo da tua beleza?)
Would you let me see beneath your perfect (Deixas-me ver por baixo da tua perfeição)
Take it off now girl, take it off now girl (Desfaz-te disso agora, rapariga desfaz-te disso agora, rapariga)
I wanna see inside (Quero conhecer-te por dentro)
Would you let me see beneath your beautiful tonight (Deixas-me ver por baixo da tua beleza esta noite?)
Agora era a minha vez de o lembrar um pouco da nossa história, sussurrei:
You tell all the girls go (Deixas todas as raparigas ir)
Makes you feel good, don’t it? (Faz-te sentir bem, não é)
Behind your Broadway show (Por trás do teu espetáculo da Broadway)
I hear a voice say please don’t hurt me (Ouvi uma voz dizer por favor não me magoes)
You’ve carried on so long (Carregaste isto por tanto tempo)
You couldn’t stop if you tried it (Não consegues parar mesmo que tentes)
You’ve built your wall so high (Ergueste um muro tão alto)
That no one could climb it (Que ninguém consegue subi-lo)
But I’m gonna try (Mas eu vou tentar)


A música terminou e eu afastei-me por completo dele, levantei-me da piscina enquanto ele me olhava e tinha de dizer alguma coisa antes de me ir embora por mais sem sentido que fosse, por mais aleatória tinha de a dizer:

-João. – Confessei enquanto me lembrava dele. – Desculpa Ezequiel, eu... Adoro-te mas se tiver que optar entre vocês, eu prefiro o João. – Disse enquanto tentava controlar as lágrimas. Estava a falar verdade, ou talvez não, sentia-me bem e era feliz com os dois. Como poderia estar a duvidar daquilo que sentia? Tinha feito amor com o João há pouco tempo, tinha declarado o meu amor por ele, tinha aceite o seu pedido de namoro e era feliz como poderia ter a minha cabeça baralhada entre o meu passado e o meu presente? A minha história de amor com o Ezequiel faz parte do passado, as memórias tem de ser enterradas, com o João estou a viver o presente, a minha felicidade de agora. Tinha que falar com ambos e esclarecer tudo. Virei costas e fui-me embora dali, afastei-me daquele sítio e dele que só me traziam recordações. Estas que não queria viver. Ou talvez quisesse, sentia-me bem nos braços do Ezequiel, como me sentia nos braços do João. Corri e fui até ao exterior da casa do Ezequiel, tinha a mala comigo e não tinha muito dinheiro comigo, talvez não o suficiente para apanhar novamente o táxi e ir para onde quer que fosse. Tinha o telemóvel no bolso das calças e a carteira, chaves e tudo o resto dentro da mala. Até que sinto alguém a tocar na mala, agarrá-la e fugir. Não consegui ver quem era, não tive tempo de reagir, senti-me fraca e impotente. Estava entregue a mim mesma e agora? Sentei-me no chão, encostei-me a um muro e chorei, soltei todos os meus sentimentos naquelas lágrimas, raiva, frustação, impotência e não saber ao certo sobre o que sentia por eles. Até que oiço alguém a gritar o meu nome, não muito longe:

-Qeu. – Eu conhecia aquela voz, era o Ezequiel. Sentou-se ao meu lado e abraçou-me fortemente, não perguntou nada apenas deixou-se estar assim. Mas eu não me sentia totalmente bem, faltava alguém para me sentir realmente bem. O telemóvel que estava no meu bolso tocou. Rezava para que fosse o João. Separei os meus braços dos do Ezequiel e agarrei no telemóvel. Olhei para o ecrã e as minhas preces tinham sido ouvidas, era o meu namorado. Precisava também de estar com ele. Não era um momento de escolha, era um momento em que precisava dos dois ao meu lado. Atendi o telemóvel sinceramente sem saber bem como o fiz, estava nervosa, super nervosa a chorar. Atendi a dizer:

-Amor preciso de ti! – Chorei ainda mais compulsivamente e o Ezequiel abraçou-me fortemente. Pegou no telemóvel e disse:

-João, a Raquel foi assaltada, não há tempo para justificações. Vem ter connosco o mais rápido que puderes, estamos ao pé da minha casa. Sabes onde era a antiga casa do Luisão? É essa mesma! Despacha-te! Até já. – Ele agarrou-me ao colo e eu deixei que acontecesse.

-Vou levar-te até minha casa, o João já vem ter connosco mas primeiro preciso que me expliques o que se passou. – Disse enquanto caminhavamos a caminho de sua casa.

-Fui assaltada. – Era a primeira vez que dizia aquilo em voz alta, custava-me a crer, sofria e chorei ainda mais, estava desesperada. Sentia-me impotente.

O Ezequiel levou-me até sua casa e preparou-me um chocolate quente, cobriu o meu corpo com uma manta e perguntou-me imensas vezes se estava bem, estava preocupado comigo. Ouvi a campainha tocar, senti-me sem forças para me levantar e abrir a porta mas por outro lado só podia ser o João, e eu queria estar com ele. O Ezequiel falou:

-Deve ser o João, eu vou lá, não te mexas. – Não me deu tempo para responder e foi abrir a porta.

Como correrá o encontro entre os três?
Como irá reagir João a presença de Ezequiel e vice-versa? Será que ela vai contar o que se passou?